2012/11/02

Dos LGBT - Parte 2

II - A segregação LGBT e o direito a ser diferente.

O conservador é, ainda, outro tipo de pessoa. Mais desonesto que a restante população, um conservador é aquele que diz que a população LGBT se separa do resto da sociedade ela própria e que não é a sociedade que a pressiona para que tal aconteça. Nada mais errado, como irei demonstrar com três exemplos à mão de todos: os festivais de cinema queer, as marcha de orgulho LGBT e as chamadas discotecas gay (chamo-lhes assim por simples pressão popular - geralmente são espaços para todos os LGBT, e por vezes nem são discotecas, mas sim bares ou cafés. No entanto, por uma questão de economia de espaço, serão assim chamadas até ao final deste capítulo).

No entanto, antes de avançar, é importante salientar uma ideia de base: a população LGBT é, de facto, discriminada e segregada pela sociedade no geral, consciente disso ou não. Quantas vezes não se ouve falar de ser-se gay como algo depreciativo, desagradável e insultuoso, até? Termos como bicha, paneleiro, virado, rabeta, roto ou, mesmo, o brasileiro viado, quantas vezes não se ouvem servindo como insulto, como algo absolutamente negativo? Quem usa estes termos no dia a dia nem se apercebe do que está a dizer; não percebe que o seu vizinho do lado, a pessoa à sua frente ou o seu próprio filho ou sobrinho poderão sentir-se afectados pelo uso destes termos. No entanto, é algo, já, infelizmente, tão natural que foi adaptado como sendo versões mais leves de outros insultos, como cabrão ou filho da puta. Não pense quem me lê que apoio o uso dos termos supramencionados num conceito não pejorativo, numa frase do género "Não, o Manuel, aquele que é rabeta". Nunca na vida apoiaria tal atrocidade porque seria perpetuar uma discriminação. No entanto, há certos termos, como gay ou lésbica (por exemplo), que servem, apenas, para indicar uma característica no meio de milhares de uma pessoa.

No entanto, embora não seja totalmente contra o uso de termos identificativos como gay ou lésbica - tal como não sou quando alguém se refere a alguém como louro ou alto ou preto - há, inequivocamente, um abuso por parte de quem usa estes termos. Algo que vai contra a normalidade de género (azul para os meninos, rosa para as meninas) é gay: este é o exemplo mais claro desse abuso, dessa falsa liberdade criativa. Mas como contornar essa questão sem se ser acusado de censor ou que limitador da liberdade de expressão (como, aliás, já fui, o que me levou a pensar precisamente nisto)?

Ora, para começar a responder-se satisfatoriamente a esta questão, tem que existir uma questão de facto. A pergunta acima feita é uma não-questão. Tão simplesmente porque não se pode ser acusado de censor se o que se está a fazer é a violar a liberdade do outro, aquilo que é, e associar à sua pessoa e à comunidade onde se insere a algo pejorativo. De cada vez que um amigo vê outro e diz "que camisola mais gay" está, no fundo - e tantas vezes sem pensar -, a limitar e a caluniar todo um universo ao qual é alheio e não pertence. Ou, pertencendo, o caso é ainda pior: está a pejorar e a minar o seu próprio caminho. A questão, então, não é como não ser acusado de censura, é como fazer parar a utilização dos termos completamente descontextualizados e com uma apropriação pejorativa. Porque se determinada pessoa é gay, efectivamente, isso significará que é um homossexual masculino ou feminino - é apenas uma característica da sua pessoa, como poderiam dizer que tinha os olhos azuis ou o cabelo castanho; mas se determinada camisola é gay (voltando ao exemplo anterior), isso já quer dizer algo mais, já quer dizer que não é apropriada para a pessoa que a veste, que há um nicho (os gays) que a utilizaria, mas não aquela pessoa. É absolutamente condenável a utilização destes termos no dia a dia, a sua banalização e a forma como se olha para o lado de cada vez que se usa isto desta forma, tantas vezes, repito, inconscientemente.

No entanto, uma das bandeiras agitadas pelos utilizadores regulares dos termos anteriormente referidos quando são acusados de estarem, com o seu linguajar, a excluir socialmente todo um grupo de pessoas, é a de que os LGBT se excluem a si próprios. O grande argumento dessas pessoas é a realização das marchas de orgulho LGBT ou os festivais de cinema queer ou mesmo as discotecas gay. E é impressionante a quantidade de pessoas que acredita piamente nisso - mesmo pessoas de dentro da comunidade LGBT. Ideia mais ridícula e infundada, por, pelo menos, cinco factores, que identifiquei e que apresento nos próximos parágrafos.

Primeiro, a comunidade LGBT já é, de facto, uma comunidade excluída. Isto é o que muita gente tenta camuflar, o que muita gente não quer dizer, mas é um facto. Começa logo por, enquanto não houver uma plena igualdade de direitos perante indivíduos iguais, haver exclusão. Depois, enquanto não deixar de haver segregação com base na orientação sexual - assumida ou não (a segregação, não a orientação sexual) -, há exclusão. Por fim, enquanto houver um simples olhar de lado de cada vez que dois homens ou duas mulheres estão de mãos dadas ou a beijar-se, ou de cada vez que um indivíduo trangénero ou transsexual passar na rua a ouvir comentários negativos, há exclusão. Que se enganem aqueles que dizem que se realizam aquelas actividades para promover a diferença e a auto-exclusão; não há maior diferença entre um heterossexual não-trans e um LGBT que entre duas pessoas escolhidas ao acaso na rua; pelo contrário, entre os mesmos dois indivíduos a sociedade no geral limita os direitos, segrega e insulta um deles: ora, adivinhe lá qual.

Em segundo lugar, as marchas de orgulho LGBT carregam em si uma carga simbólica. Uma marcha de orgulho LGBT significa, para muitos participantes, poderem ser eles próprios, sem amarras nem cordas que os oprimam, sem terem que passar por aquele esconder constante do seu dia a dia. É a ocasião perfeita para poderem gritar que estão lá, que existem, que reivindicam os mesmos direitos que todas as outras pessoas usufruem. É uma oportunidade, também, de conhecer pessoas, seja para o que for: falar, trocar experiências, travar amizades dentro da comunidade, criar uma rede de conhecimentos ou, simplesmente, ter sexo com alguém interessante. Seja qual for o objectivo de uma marcha de orgulho LGBT, seja qual for o tema quente dessa altura relacionado com a comunidade, há sempre uma coisa que não descarregam dessas marchas: a esperança de que, um dia, não sejam mais precisas. No entanto, e se, por acaso, os LGBT deixassem de ser excluídos? Deixar-se-ia de realizar as marchas?  Eu estou em crer que não. Porque não basta adquirir os direitos, é preciso lutar, constantemente, para os manter. E as marchas de orgulho LGBT são, efectivamente, uma forma de luta. Com o 25 de Abril de 1974 deu-se um salto tremendo nos direitos dos trabalhadores (que têm sido sucessivamente retirados, mas isso é todo um outro post), mas foi, precisamente, a partir daí que se começaram a realizar as magníficas manifestações do 1.º de Maio. Da mesma forma, aquando da aquisição dos plenos direitos por parte dos LGBT, não será aí que pararão as marchas de orgulho; pelo contrário, será aí que mais gente virá para a rua, naquela tarde.

Em terceiro lugar, os festivais de cinema queer acontecem por dois motivos: um, pela afirmação da temática queer como algo existente na sétima arte; dois, para poderem ser mostradas algumas obras magníficas que, pela segregação que se faz dos LGBT, não passam no circuito comercial. Tão simples quanto isto. Não se trata de qualquer agenda escondida de os LGBT se auto-excluírem através de um festival de cinema; trata-se, simplesmente, de se dizer que existe produção ao nível da sétima arte com aquela temática e que, a única razão pela qual não passa no circuito comercial, é pela visão mesquinha da generalidade das pessoas não as levar ao cinema e não dar lucro às grandes distribuidoras. Porque um festival de cinema não tem tanto o objectivo de ter lucro com as obras mostradas; tem, isso sim, o objectivo mais que louvável de mostrar a um público que se afastaria, normalmente, de determinado tipo de filmes, que eles existem e que os podem ir ver a preços mais baixos. Não cumpre objectivos de mostrar filmes pornográficos para orgias colectivas de gays e lésbicas; cumpre, isso sim, com o objectivo de dizer que há mais no cinema do que o que as grandes distribuidoras passam. Tal como os festivais de cinema documental, por exemplo, os festivais de cinema queer existem para mostrar o que está a ser feito, nada mais. E muito está a ser feito, que a maior parte do público não conhece por puro preconceito.

Em quarto lugar, as chamadas discotecas gay existem para satisfazer um público-alvo e lucrar com essa satisfação. Nada mais que isso. Novamente, não temos uma agenda maléfica escondida de um grupo de pessoas que se quer separar do mundo porque há um orgulho doentio em estar-se só; pelo contrário, tal como com os festivais de cinema queer, existem discotecas gay porque se um casal de homens ou de mulheres for para uma discoteca normal é olhado de lado e insultado ou, até, expulso do sítio onde se está a divertir. Estes espaços de diversão nocturna existem porque é a única coisa que pode ser oferecida; as discotecas gay são aquele último espaço onde se pode ser quem é, às vezes depois de uma longa semana num escritório onde a homo, bissexualidade e os transgénero e transsexuais não são bem recebidos, onde se passa a semana a fazer piadas sobre eles - as discotecas gay são o escape diário que uma marcha de orgulho LGBT dispõe anualmente. Uma ida a uma discoteca gay é, para além do mais, um dos únicos sítios para se encontrar algum parceiro. Não há qualquer vergonha nisso, nem deve ser assunto tabu  O que é certo é que ninguém anda com cartazes em letras berrantes com a sua orientação sexual escrita; nas discotecas gay, pelo menos, tem-se a certeza de se estar a apontar para as pessoas certas, sem ter medo de errar, de pagar uma bebida a quem está interessado no sexo oposto ou, simplesmente, de fazer figura de parvo. E, para além do mais, não é nada que uma pessoa heterossexual não faça, também, numa qualquer outra discoteca. Simplesmente, as discotecas gay são espaços onde não há que ter receios, e onde a liberdade de se ser quem é está no seu estado mais puro.

Em quinto lugar, ao passo que as marchas de orgulho não só não deixariam, certamente, de crescer, os festivais de cinema queer e as discotecas gay tenderiam a diminuir em número com a aquisição de plenos direitos e com a erradicação da discriminação e segregação para com os indivíduos LGBT. Trata-se de um processo orgânico muito simples: se deixa de haver discriminação, deixa de haver preconceito, passa a haver mais lugares onde se possa ver cinema queer e dançar com quem se quer, e estes lugares desaparecem. Não são eles nem a sua existência, no entanto, que privam a cultura queer de desabrochar ou que perpetuam o preconceito; continuam a ser as pessoas ou as grandes distribuidoras a ter uma mente absolutamente fechada e obsoleta perante algo que existe, é perfeitamente natural e exige algo tão simples quanto o mesmo que já existe para as outras pessoas todas.

Mas é fácil discriminar. É muito fácil apontar o dedo e gozar, ou, pura e simplesmente, fingir que não existe. Mas não é fácil compreender a diferença. Não é fácil aceitar que há quem seja diferente. E mesmo essa diferença, é uma expressão desagradável, porque não se é diferente. É-se igual. Tão igual quanto uma pessoa loura é igual a uma pessoa morena - são ambas humanas, merecem ambas o mesmo tratamento.

Acerca do tão badalado bullying, então, difícil é saber por onde começar. Pode-se começar por tentar perceber a origem, e aí ter-se-á pano para mangas porque poderá ter origens a nível da educação, da pressão social, do mero preconceito gerado pela ideologia ou religião, ou tantas outras coisas. No entanto, uma coisa se nota enquanto padrão em qualquer que seja a causa e a origem do bullying: a sua génese é a ignorância. Quem insulta outros com base na sua orientação sexual não faz a mais pequena ideia do que está a falar, não sabe o que é ser-se homo ou bissexual e, muitas vezes, menos sabe ainda acerca de se ser transgénero ou transsexual. Quem agride outras pessoas - verbal e/ou fisicamente - para ver se "expulsa" a homossexualidade do outro é o mais ignorante de todos, que não percebe que já não basta o outro sentir que a sociedade não tem lugar para si e para a sua suposta diferença, quanto mais com gente a esmurrá-lo, a pontapeá-lo e tantas vezes, mais vezes que devia (só acontecer uma vez já era demais), mortalmente, seja por causa dos ferimentos causados, seja pelo posterior suicídio. Acerca deste tema não serei a pessoa mais indicada para o analisar, por causa de todos os seus contornos e pequenas nuances que o tornam num objecto de estudo sociológico, psicológico e de tantas outras ciências. Mas de uma coisa estou certo: muito embora haja erros na nossa juventude, coisas de que nos arrependemos quando olhamos para trás, somos sempre eco de alguma coisa; e aquele que, com o passar dos anos, não só não se arrepende do que fez, como não ganha uma consciência que o impeça de fazer o mesmo que anteriormente, é um psicopata que precisa de tratamento. Urgentemente.

III - As questões fracturantes.

As questões não são fracturantes, comece-se por aí. Não fragmentam a sociedade em pequenos grupos de opinião e não a tornam num agente activo de discussão permanente. Isto não acontece porque a sociedade, simplesmente, não se importa. Não é uma falta de interesse boa, como em não se interessar se determinado indivíduo é LGBT ou não porque é igual a si, de qualquer das formas; pelo contrário, é uma falta de interesse patológica, onde não quer saber do que se passa consigo própria e dentro de si mesma. A sociedade actual não quer saber e os LGBT estão a pagar um preço muito elevado. A sociedade actual não se fragmenta em questões que poderiam ser fracturantes porque estas, na sua maioria, não lhes diz respeito. Fora do campo dos direitos LGBT, com a eutanásia, a maior parte da população não tem sentido crítico face a esse assunto porque nunca teve ninguém a querer acabar com a sua própria vida depois de um sofrimento inesgotável. Da mesma forma, o referendo acerca da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez teve a abstenção que teve porque a maioria das pessoas nunca teve que lidar com uma situação de um filho indesejado, que surge nos piores momentos e com as piores condições. Assim, o que esperar de uma sociedade onde, estima-se, apenas cerca de dez porcento da população é LGBT? Obviamente, nas chamadas questões fracturantes em relação aos direitos LGBT, também a sociedade pouco ou nada terá a dizer porque não é nada que lhe diga respeito directamente.

Ou será mesmo assim? Pensemos: dez porcento é uma em cada dez pessoas. Assumindo que uma pessoa consegue conhecer cem pessoas a quem poderá desejar bem, estatisticamente, dez dessas pessoas serão LGBT. Dez pessoas que não estão bem. Dez pessoas a quem essa pessoa não deseja bem por inacção. E, o pior de tudo, é que a sua postura acrítica e sem pensamento perante o que a rodeia, nem a faz dar conta de que algo não está bem. De que aquelas dez pessoas à sua volta, a maioria das quais com quem fala diariamente, sofrem por não poderem ter uma vida condigna e igual à dos outros cidadãos; aquelas dez pessoas que, durante anos, não puderam oficializar o seu amor casando e legitimando a sua relação de forma máxima perante o Estado e a sociedade; aquelas dez pessoas que, com o seu parceiro, querem adoptar uma criança, poder ajudá-la, satisfazendo os seus instintos mais básicos de paternidade; aquelas dez pessoas das quais algumas não estarão satisfeitas com a vida que levam porque estão encerradas num corpo que não corresponde à sua mente, porque lhes deram um nome e atribuíram-lhes um sexo que não está de acordo com aquilo que são realmente. Estas são as chamadas questões fracturantes, mas que não fracturam nada.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal foi uma longa e dolorosa luta, desde que um casal de lésbicas se tentou casar há cerca de seis anos. Mas já antes era algo desejado. Não se tratou de um passo dado na longa caminhada dos direitos LGBT; tratou-se de uma gigantesca maratona percorrida. No entanto, por já ter acontecido por cá, não nos podemos nunca esquecer que ainda não é uma realidade na maioria dos países do mundo. Muito embora muitos países por esse mundo fora promovam uma cultura de ódio perante os LGBT - e esses países terão um caminho ainda mais longo a percorrer, de que falarei no último capítulo -, posso dizer com relativa segurança que os países ditos ocidentais não promovem essa cultura de ódio. E, no entanto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não é uma realidade. Cada país terá, certamente, as suas razões para ainda não haver esse casamento, mas creio que se prenderá muito com um certo conservadorismo sempre presente quando se tocam nestes assuntos, conservadorismo esse derivado de uma profunda ignorância, o que, naturalmente, gera medo. Porém, quem estará em melhores condições para reparar essa ignorância da sociedade será o Estado, por regra o responsável pelos organismos que tutelam as pastas da educação, e quem está à frente do Estado é um conservador. Gera-se um ciclo interminável onde nada muda. E as coisas precisam de mudar.

Por isso, para os heterossexuais conservadores, há que começar por algo muito simples, tão simples como uma questão: em que é que o casamento entre pessoas do mesmo sexo mudará a minha vida? A resposta será sempre "em nada". Porque, de facto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não altera a forma como as pessoas vêem o mundo. Ninguém as obriga a estar presente na cerimónia; são livres de virar a cara para o lado - embora o façam desrespeitosamente - na hora de beijar o cônjuge. O que está em causa não é o casamento enquanto instituição social; o que está em causa é a possibilidade de aceder a um direito básico, que qualquer cidadão deverá ser capaz, sem qualquer impedimento com base na sua orientação sexual, de usufruir. Em tempos, o chamado casamento inter-racial também foi ilegalizado. Chegou-se à conclusão que amor é amor, e que não é possível fazer-se escolha de onde é que vamos pôr a nossa vista em cima. Com o caso dos casais do mesmo sexo é a mesma coisa: é amor, simplesmente, e a possibilidade de conseguirem construir uma vida tão estável a dois como qualquer outro casal.

Em tendo essa vida estável a dois, será altura de dar vagar a um dos estímulos de sobrevivência da espécie mais natural de todos: o da procriação. Falarei disso, de como afecta a população LGBT e de como podem ser alguns problemas perfeitamente ultrapassados no próximo capítulo.

Assim, tal como pode acontecer com o casamento, também outras questões fracturantes não o são, de facto, porque o impacto na vida da maioria da população é mínimo, se existente. O maior impacto está na vida melhor que os LGBT terão consigo próprios e com os seus respectivos companheiros. E não se pode, nunca, tratar de uma vontade ou de um impulso por parte da sociedade para alterar o estado das coisas. A sociedade, enquanto maioria, não é competente em julgar os direitos das minorias. Não se pode, nunca, exigir um referendo aos direitos dos LGBT por duas razões: primeira, porque isso implicaria termos uma maioria de pessoas cuja vida nunca seria afectada por isso a decidir pelas pessoas a quem essa decisão afectaria de facto; segunda, porque se tratam de direitos, justos e proporcionadores de igualdade, e os direitos não podem nunca ser referendados - são imediatamente atribuídos. Da mesma forma e na mesma ordem de razão, será perfeitamente escusado entrar em populismos dizendo que se vai ouvir a população antes de se tomar uma decisão, ou dizer que a sociedade ainda não está preparada para tal. Bom, não entremos nesse caminho, a não ser que fique explícito de que população se trata. Se se estiver a falar da população LGBT, se se perguntar a essa população se está pronta para ter igualdade no casamento, se tem, no seu seio, relacionamentos estáveis e prontos para acolher uma criança, ou se a lei que gere a identidade de género não serve por não abranger casos suficientes e por continuar a marginalizar algumas pessoas, aí sim, fará todo o sentido uma consulta popular acerca dessas questões fracturantes. Caso contrário, se é para debater junto da sociedade no geral acerca dos assuntos que dizem respeito apenas a dez porcento da população, nesse caso é pura demagogia usar essa desculpa e má vontade por não fazer o que está certo.

(NA PARTE SEGUINTE:

IV - Dois papás e duas mamãs.
V - A religião e os LGBT.)

2012/10/30

Dos LGBT - Parte 1

Daria para todo um volume, o que vou tentar condensar aqui. Mas sinto a necessidade de o escrever como os peixes necessitam de água. Porque algo está mal, algo está muito mal, e não há grande coisa em vista que nos diga que vai mudar. Já por este espaço falei nisto, mas hoje é a fundo. Hoje é tudo aquilo que alguma vez quis dizer ou escrever mas que nunca o fiz. Hoje é chamar os bois pelos nomes, aclamar quem faz bem e apontar o dedo a quem faz mal. Porque isto é um caso de cidadania, um caso de respeito e, infelizmente, tantas vezes um caso de polícia. Isto a que me refiro são os direitos das lésbicas, dos gays, dos bissexuais e das pessoas trans (-género ou -sexuais).

Pelo princípio é que se começa: um homossexual é uma pessoa que se sente sexualmente atraída por pessoas do mesmo sexo (as lésbicas e os gays, portanto); um bissexual é uma pessoa que se poderá sentir atraída (já lá iremos à questão do poderá) por pessoas de ambos os sexos; uma pessoa transgénero é uma pessoa que nasce com uma psiquê de um determinado género, no corpo do género oposto; transsexual é uma pessoa que muda fisicamente de sexo para se encaixar em modelos sociais onde se sente mais confortável.

É sempre bom começar por explicar alguns conceitos. Doravante, de cada vez que usar aqueles termos, já se sabe ao que me refiro. No entanto, algumas explicações ainda são devidas, nomeadamente de cariz mais sexológico que já propriamente nos campos socio-políticos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans).

A sexualidade, para começar, não é a preto e branco com tons de cinzento. Não se é ou heterossexual, ou homossexual, ou bissexual. Há todo um espectro de cores dentro da sexualidade, toda uma configuração espectral que torna possíveis termos como "exclusivamente homossexual" ou "predominantemente heterossexual, ocasionalmente homossexual". Trata-se de sexualidade, simplesmente. Aquele homem casado há trinta anos pode perfeitamente ser feliz com a mulher, mas sentir a necessidade de satisfazer o seu lado "ocasionalmente homossexual" (ou, quiçá - e correndo o risco de ser um pouco provocateur - o seu lado "predominantemente homossexual"). Os bissexuais, então, poderão ser considerados como tendo o maior dos espectros de actividade sexual. É um espectro que, no meio, tem "ocasionalmente heterossexual, ocasionalmente homossexual", mas cujas franjas podem ir até à zona da predominância - hetero ou homossexual. No entanto, uma concepção muito errada acerca da bissexualidade é que se trata de poligamia, de alguém que não está satisfeito com o que tem, ou que está a recalcar algo. Nada mais errado. Um bissexual trata-se de alguém que pode calhar sentir-se sexualmente atraído por pessoas do mesmo sexo ou de pessoas do sexo oposto, ponto final. Não é algo de estranho, é algo que já nos aconteceu a todos; só que, em vez de estar sexualmente atraído hoje por um rapaz ou por uma rapariga e amanhã por outra pessoa do mesmo sexo por que se sentiu antes atraído, está hoje atraído por um rapaz e amanhã por uma rapariga. E não acaba aqui. Como disse é um espectro, mas não é um espectro que vá, simplesmente, de A a B em progressão aritmética, de exclusivamente heterossexual a exclusivamente homossexual. Não, antes pelo contrário, é algo que pode dar voltas e voltas, completamente, digamos, wobbly-gobbly, e há tantas outras definições e termos novos que é preciso fazer uma investigação intensiva de todos eles para se chegar a uma lista completa e final - algo a que não me proponho, seja por não ter tais competências, seja porque não é acerca disso que quero falar. No entanto, que fique em claro que existem, para além das pessoas que já descrevi, pessoas que não se sentem atraídas por ninguém (assexuais), pessoas que se sentem atraídas por pessoas sem olhar para o seu sexo (pansexuais), pessoas que se poderão sentir atraídas por vários sexos - reconhecendo a existência de mais que dois (polissexuais) -, pessoas que se sentem atraídas por pessoas, sem olhar a sexo, género ou qualquer outra característica (omnissexuais), e, enfim, toda uma gama de pessoas, com atracções para todos os gostos.

O leitor mais arguto reparará, certamente, que me estou unicamente a referir a atracção sexual. Refiro-me a tal porque é exactamente o que a homo, bi e heterossexualidade são - termos que referem atracções e desejos sexuais. Não estou a falar de relações ou de romantismos. No entanto, será sempre pertinente explorar essa questão. Um bissexual, embora se possa sentir atraído por ambos os sexos (sexos, não géneros - e aqui refiro-me apenas aos convencionais masculino/feminino), poderá ter uma certa, chamemos-lhe, inclinação, para ter relações românticas com um deles. Essa pessoa bissexual será, então, heterorromântico ou homorromântico. No entanto, poderá haver uma espécie de equilíbrio entre as suas relações românticas; nesse caso, a nossa pessoa bissexual será birromântica. Poderá, ainda, dar-se o caso dessa pessoa não se sentir romanticamente atraída por ninguém, não querer relações românticas, apenas sexuais; nesse caso, estamos perante um bissexual arromântico. Embora, claro, tenha falado até agora apenas usando o exemplo de uma pessoa bissexual, fi-lo simplesmente porque é, sexualmente, a pessoa mais simples para eu dar um exemplo romântico, apenas porque é aquela pessoa que terá o seu espectro mais amplo. Em todos estes espectros seria, claro, redutor se apenas os bissexuais desfrutassem de várias possibilidades românticas. Não ponho de parte a existência de homo ou heterossexuais birromânticos, por exemplo, ou mesmo homossexuais heterorromânticos e heterossexuais homorromânticos. As combinações são, virtualmente, incontáveis.

Importa também, antes de mais nada, salientar a diferença entre uma orientação sexual e uma parafilia. Uma orientação sexual é, nada mais nada menos, que uma inclinação natural de cada indivíduo para a atracção sexual por determinado conjunto de pessoas com base no seu sexo ou género (este último caso, por exemplo, nos polissexuais ou nos pansexuais); a orientação sexual de um indivíduo faz com que ele ou ela se relacione sexualmente com um número limitado de pessoas do conjunto total com base nas suas características sexuais e/ou de género. Já no caso das parafilias, um indivíduo sente uma atracção sexual por um determinado conjunto de pessoas mas, em vez de ser com base nas suas características género-sexuais, é com base noutras características, como o facto de pertencerem a outra espécie que não seja a humana, ou por pertencerem a um grupo de pessoas com faixas etárias muito díspares daquela em que está inserido, ou qualquer outra coisa fora da classificação por características género-sexuais. É isto que difere uma pessoa com uma orientação sexual específica de uma pessoa com determinada parafilia: embora ambas sejam atracções ao nível sexual, uma diz respeito a características género-sexuais e a outra a características externas a essa classificação. Quer uma orientação sexual, quer uma ou mais parafilias podem coexistir num mesmo indivíduo. Exemplo: um homem adulto que gosta de mulheres adultas é um heterossexual; um homem adulto que gosta de mulheres adultas e de ter relações sexuais com elas estimulando e acariciando os pés e tirando prazer sexual de tal acto é um heterossexual com uma parafilia.

Assim, uma orientação sexual trata-se de algo dialéctico. Diz respeito ao alvo da atracção de um indivíduo ser uma determinada faixa no espectro género-sexual, onde essa faixa do espectro género-sexual existe apenas para o indivíduo e é criada para o indivíduo, de acordo com a sua disponibilidade na sociedade em que o indivíduo está inserido. Por outro lado, o indivíduo nascerá geneticamente programado para ter uma predisposição para determinadas faixas género-sexuais. Nasce, então, a orientação sexual, oriunda da predisposição genética para se sentir atraído por um grupo de pessoas e por esse mesmo grupo de pessoas estar disponível, ou não, na sociedade. Se esse grupo não estiver disponível - por exemplo, numa sociedade hipotética onde nascia um homossexual num meio exclusivamente feminino (digamos, se fosse poupada uma criança do sexo masculino homossexual no seio de uma sociedade amazona) -, só se poderá conjecturar o que poderá acontecer no desenvolvimento afectivo de um indivíduo. Temos inúmeros casos de pessoas que reprimiram a sua verdadeira orientação sexual por pressões sociais diversas, as mais notáveis sendo as religiosas. No entanto, apenas reprimiram, não fizeram desaparecer; e há relatos de alegados escândalos de políticos conservadores casados com mulheres, por exemplo, apanhados em relações sexuais com outros homens. A orientação sexual, nestes casos, estava lá, mas foi mascarada de tal forma que, ainda que apenas de forma temporária, conseguiu ser reprimida. Mas é claro e evidente de que não se trata de uma escolha e que tal ideia está profundamente errada. Está claro que nunca será completamente reprimida nem influenciada, sem ser com casos extremos de isolamento social ou de eugenia. E tal, numa sociedade respeitante dos mais básicos direitos humanos, será algo inaceitável.

Acredito que por esta altura já haja uma certa compreensão de como eu estruturo o meu pensamento em relação a estas questões, como utilizo os termos básicos como ferramentas para chegar a termos mais complexos e como penso, o mais cientificamente que me é possível, as questões LGBT. Não se trata de invenções minhas, de coisas que idealizo; também não se tratam de factos crus, em bruto: trata-se da minha interpretação dos factos a que vou tendo acesso, de forma rigorosa e sistematizada. Não é um texto para ter fontes no fim, remetendo para estudos, para ensaios ou para relatos; é um texto para dar a conhecer o que penso, como chego ao que penso e o que faço ou o que proponho fazer com isso. Dessa forma, acho que é pertinente entrar neste texto na continuidade do parágrafo anterior, de que a homossexualidade não é uma escolha, e em como não faz sentido sê-lo. Partirei, de seguida, para a questão da segregação dos LGBT e da necessidade e da importância da realização de determinados eventos, como paradas ou festivais de cinema. Posto isto, estão criadas as condições para avançar, depois, para as mal apelidadas de questões fracturantes, como o casamento ou a adopção homoparental. O bloco seguinte terá a ver com algumas ideias acerca do crescimento de crianças no seio de famílias homoparentais. De seguida falarei do papel da religião nos assuntos LGBT. Creio ser ajustado, então, terminar dizendo o que é que cada um de nós, individualmente e em comunidade poderemos fazer. "Em comunidade" porque não se tratam de pessoas sem rosto que vagueiam por aí em orgias infindáveis, repletas de ecstasy, paixão e música louca; tratam-se de pessoas com rosto, que se sentam ao nosso lado nos transportes e que existem - mas cuja voz é reduzida sempre com o mote de que há algo mais importante para discutir, ou que a sociedade ainda não está pronta para aceitar algumas coisas. Não sendo propriamente fã de Hillary Clinton, a senhora ex-Primeira-Dama dos Estados Unidos da América tem uma frase que ficará na História desta interminável luta: "Os direitos gay são direitos humanos." Nada mais certo. E porque não se tem tempo para esses direitos humanos? Porque é que há coisas mais importantes a fazer? Porque não tentar transformar a sociedade legislando no sentido de dar aos LGBT todos os direitos que deveriam ter? Não me proponho a responder a estas questões, mas elas estão lançadas e têm um destinatário. Destinam-se a todos aqueles que se opõem ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; destinam-se aos que votam contra as crianças e contra os LGBT ao votarem contra quando se coloca em cima da mesa projectos que visam a abertura da possibilidade de adopção por parte de casais de pessoas do mesmo sexo; destinam-se aos que fazem do ódio a sua bandeira diária; destinam-se aos ignorantes por opção, àqueles a quem não falta o acesso à informação, mas que preferem não a usar; destinam-se a todos aqueles que por elas se sentem afectados e a todos os que deviam fazer um exame de consciência perante determinadas acções diárias. Enfim, são questões lançadas, que dificilmente terão resposta, mas que serão, decerto, de importante reflexão. Espero que, pelo menos, sirvam, tal como este texto, para isso.

I - A homo ou a bissexualidade não são escolhas.

Parto de uma premissa muito simples para afirmar o que afirmo. A homo e a bissexualidade são orientações sexuais, tal como a heterossexualidade. Nunca, em fase alguma da vida de um heterossexual, ele escolhe gostar do sexo oposto. Porque deveria um homo ou um bissexual escolher o mesmo sexo como potencial alvo da sua atracção? Porque deve, perante um tão largo espectro género-sexual, escolher-se, eventualmente entre outros, aquele que é seu igual?

A resposta mais simples é a orientação sexual, seja ela qual for, não ser uma escolha. Muitos, é certo, gostariam que fosse. Seria tão mais simples poder, um dia, acordar e pensar ser de uma orientação sexual diferente, e sê-lo, de facto. O simples facto de haver discriminação em torno nos LGBT deveria ser razão suficiente para pensar que não se pode mudar de orientação sexual ou de género querendo-o, apenas, por uma série de razões. Para começar, se fosse dada a escolha, ou se tal fosse biologica e socialmente possível, não haveria tanta discriminação. A discriminação é um factor exclusivo da escolha da orientação sexual. Este pensamento é muito fácil de se ter: se fosse possível a todos os níveis a escolha de uma orientação sexual, primeiro, toda a gente experimentaria momentos em que estaria mais predisposto a ter uma outra orientação sexual para além daquela que tem, fosse através de atracções indesejadas que se transformariam em autênticos desejos, fosse através de momentos de frustração para com o mundo, em que o que se deseja é mudar; segundo, tendo já experimentado num momento ou noutro a escolha, podendo até haver algumas experiências a nível sexual, toda a gente saberia o que é ser algo mais que a sua própria orientação sexual; terceiro, a discriminação excluir-se-ia, então, por não haver lugar numa sociedade em que tal coisa tão importante se pudesse escolher tão facilmente - haveria uma habituação a essa escolha que levaria a que fosse a própria discriminação o objecto discriminado. Parece algo paradoxal, mas não o é. Veja-se, por exemplo, um caso artificial: o aparelho nos dentes. Se, dantes, qualquer criança que usasse um era discriminada e gozada por usar tal coisa, actualmente não só não se é gozado nem discriminado por se ter um aparelho nos dentes, como há quem os ponha sem precisar de o usar, apenas porque acha que lhe fica bem. Na mesma lógica, fosse por protesto social, por questão de estilo, por ser moda, ou, simplesmente, porque podia, haveria muito mais gente a trocar a sua orientação sexual por outra para poder encaixar no seu dia a dia.

Mesmo argumentando que seria uma escolha única e imutável a posteriori, tal continua a não fazer sentido. Para começar mantém-se a questão da discriminação servir como processo de exclusão desta ideia por continuar a ser incompatível com a escolha, seja ela reversível ou não; isto porque haveria sempre a questão da moda, do protesto ou de outras razões perfeitamente válidas para se tomar tal decisão. Depois, a escolha não é compatível com a própria natureza do espectro de sexualidades. Isto porque se trata de um espectro que, apesar de vasto e com infinitos intervalos possíveis dentro de si, tem um rigor na definição desse intervalo que é extremamente difícil de emular numa escolha consciente. É difícil saber-se exactamente até que ponto é que se é "predominantemente homossexual" e se passa a ser "ocasionalmente homossexual", que percentagem de cada um deles é que estará presente na vida sexual da pessoa, e por aí. A falta de rigor nas escolhas humanas excluem, também, a hipótese de ser uma escolha, por mais definitiva que seja. Por fim, um não aumento do número de pessoas que não são heterossexuais, aumentando, isso sim, por causa da abertura social que hoje se vive, o número de pessoas que se assumem como algo para além de heterossexuais (que há uma certa diferença entre um inquérito anónimo em relação às práticas sexuais e a assumpção de algo publicamente), revela que não se trata de uma escolha, que há um certo equilíbrio numérico entre a orientação sexual predominante (inegavelmente, uma predominância da heterossexualidade) e as outras orientações sexuais. Depois, toda esta questão da escolha acarreta um problema: se há uma escolha a ser feita em determinado momento da vida de uma pessoa, o que é que essa pessoa é, sexualmente, até esse ponto? Não faz sentido a questão da escolha numa sociedade como a nossa, onde há crianças que iniciam a actividade sexual aos 11 ou 12 anos, que não têm a capacidade intelectual desenvolvida para poderem fazer uma escolha que mude a sua vida conscientemente. Não faz igualmente sentido, até esse ponto, as pessoas serem assexuadas. E que ponto é esse? O ponto em que se inicia a actividade sexual? Então e aqueles indivíduos que têm 40 anos e ainda não tiveram relações sexuais, são assexuais ou permanecem virgens porque adiaram a sua escolha? Ou escolheram antes e arrependeram-se? Ou o ponto é outro, algures depois da puberdade, onde todas as experiências sexuais anteriores foram meras apalpadelas de terreno para ver do que se gosta mais? Todas estas questões são, claro, ilustrativas do ridículo que a falsa questão da escolha acarreta. Falsa, obviamente, porque não é questão nenhuma. Não se trata de perguntar "E se for?" - trata-se de afirmar "Não é!"

No entanto, apesar de não se tratar, claramente, de uma escolha, ponha-se o advogado das questões LGBT e seu defensor no lugar daqueles que dizem que é uma escolha. Suponhamos por uns momentos que se trata, de facto, de uma escolha, que os homossexuais são homossexuais porque o querem, que os bissexuais escolheram ser assim para terem mais possibilidades e que os heterossexuais escolheram ser heterossexuais porque há uma certa geometria nas mamas que lhes é apelativa (embora isso fosse já um sinal extra-escolha; mas para este estudo de caso bastante faux, digamos que é, meramente, pelo efeito estético que as mamas poderão produzir e nada mais). Por esta altura o defensor dos direitos LGBT depara-se com um problema que eu, sendo-o, naturalmente me deparei. É que, geralmente, quem defende causas como as dos direitos LGBT, tem uma visão do mundo mais aberta que aqueles que não se dedicam tanto a este tipo de causas. Há toda uma visão de possibilidades infinitas e de potencialidades humanas que poucas outras pessoas são capazes de reconhecer. Assim, quando confrontado com esta formulação ("E se fosse mesmo uma escolha?"), o apoiante das causas LGBT devolverá com outra pergunta. A pergunta é aquilo que causa mais embaraço nos supostos democratas que atropelam os direitos LGBT porque, realmente, não saberão que responder.

"E depois?"

É esta a pergunta. E depois, se fosse uma escolha? Há liberdade de associação livre, há liberdade política, há liberdade de se ser de qualquer religião ou de não se ser de religião nenhuma, há liberdade de escolha num inúmero leque de decisões quotidianas que têm de ser tomadas, e que o são com toda a liberdade. Assim, porquê negar o acesso a direitos humanos ("os direitos gay são direitos humanos", lembram-se?) apenas com base numa escolha de vida? Porquê segregar todo um grupo de pessoas que só quer ser feliz e condená-los a viver num regime persecutório, onde há uma norma à qual não se pode fugir? Novamente, temos a discriminação como algo paradoxal em relação à escolha. Ou, pelo menos, sê-lo-ia se fossem pessoas minimamente decentes a colocar a falsa questão da escolha - embora compreenda porque não o podem ser, porque na falsa questão da escolha não há lugar à existência de pessoas decentes. O tipo de gente que diz que ser-se LGBT é uma escolha é o mesmo tipo de gente que nega a liberdade de associação, que repudia a liberdade política e que põe em causa a laicidade do Estado. Tratam-se de pessoas que, publicamente, se assumem como democratas, mas depois, nas suas escolhas e convicções são opressores, são aqueles que suprimem os direitos de todos os que não são homens, heterossexuais e com rendimentos mensais brutais. Os conservadores, como também são chamados, são os piores inimigos dos LGBT porque atropelam os seus direitos e têm consciência do que estão a fazer. São aqueles que acreditam piamente que estão a fazer a coisa certa, mas o pior louco é o que acha que é são.

E, pior ainda, são os conservadores que dizem que, mais que uma escolha, ser-se LGBT é tratável. Porque o que, para eles, é diferente, é um horror, uma aberração, uma doença, algo que deve ser tratado. Mas não é; é, simplesmente, não se ser como a maioria porque não se tem outra hipótese. Nenhum LGBT escolhe ser discriminado uma vida inteira, ter menos direitos, acabar por ter menos possibilidades. Nenhum LGBT escolhe sê-lo numa sociedade que torna o seu dia-a-dia num Inferno na Terra. E, no entanto, existem. Não há outra hipótese. Nasce-se assim, morre-se assim. Não é uma escolha - é, apenas, ser-se diferente.

(NA PARTE SEGUINTE:

II - A segregação LGBT e o direito a ser diferente.
III - As questões fracturantes.)

2012/01/16

Da minha vida revisitada

Há muitas formas de viver a vida. Não sou ninguém para julgar quais serão melhores, quais serão piores ou quais serão completamente indiferentes à sociedade e ao mundo. Uma coisa é certa: quem vive, afecta outros, e é a partir da forma como se afecta o outro que se podem distinguir as várias formas de viver a vida.

Sem correr o risco de começar a criar todo um tratado filosófico - embora gostasse de o escrever um dia -, quero dizer que vou descrever aqui, não a forma do tratado que seria como toda a gente pode viver, mas sim a forma como eu vivo a minha vida e como deveria vivê-la para eu ser mais feliz. (sim, eu. Não vou dissertar e divagar acerca das vivências dos outros. Seria incorrecto fazê-lo sem ter um rumo completamente definido para a minha própria.)

No fundo, vivo uma vida semi-viva. Sou afectado (não no mau sentido da palavra) por muita gente, numa base diária, e há aqueles que me afectam muito, aqueles que me afectam menos e os que me são completamente irrelevantes. Sou afectado, sobretudo, por aqueles que gosto - amigos, mais que amigos, família... -, mas sinto que não afecto tanta gente como alguns acontecimentos à minha volta. Sou uma espécie de pessoa-fundo: estou lá, despoleto alguns acontecimentos, mas vejo-os a acontecer à parte, e depois sou afectado pela reacção das pessoas a esses acontecimentos. Se, por um lado, não me incomoda não ser eu o acontecimento, por outro sinto que a vida, aquela que eu próprio influencio, me passa ao lado. Sinto que não afecto ninguém. Que quando alguma etapa acaba para mim, as outras pessoas não são minimamente afectadas pela minha partida. Sinto, no fundo, que sou menos que aquilo que poderia ser.

Claro, isto é um registo muito fatalista e negativo, mas não o vejo assim. Sim, é muito mau quando pessoas de quem gosto - as anteriormente referidas e mais - não sentem a minha falta e não as afecto de todo, mas não é nada desagradável passar ao lado da maior parte das pessoas, pessoas de quem não gosto ou que não me dirão nada a longo prazo. Não compensa, é certo, mas é um bom consolo. Teria algumas coisas a contar do primeiro caso e inúmeros a relatar do segundo, mas não vale a pena maçar ninguém com isso.

Agora, sim, seria possível eu viver de forma mais feliz que a que vivo agora. Seria possível eu afectar mais gente.

A grande questão que se coloca, para se saber se se deve mudar alguma coisa na nossa vida é: se eu morresse hoje, agora, aqui, quem sentiria mesmo a minha falta? Pensando a fundo - e pondo de lado os indiferentes - chego a uma conclusão bastante catita. Há duas classes de pessoas: há aquelas que me iriam chorar e que se iriam lembrar do acontecimento da minha morte e esse pensamento as iria assombrar durante muito tempo; e depois há aquelas pessoas que a uma escala muito menor que a morte, não se importam comigo para além de ocasiões amargas e de simples trocas de palavras - aquelas pessoas que me iriam chorar um dia ou dois, que iriam dizer que me iriam lamentar e recordar, mas que, à primeira oportunidade, se esqueceriam de mim.

Não estou a ser azedo nem a querer acusar ninguém individualmente. São grupos de pessoas e não o digo com rancor. Quanto muito, rancor para comigo próprio, por não afectar o segundo grupo de pessoas mais que aquilo que devia, se calhar. Rancor guardaria se houvesse pessoas que eu afecto e que não se importariam à mesma com o meu eu defunto. Creio dessas não existir alguma.

Reflectindo sobre isto e sobre a eterna questão "se pudesses alterar alguma coisa do teu passado, sem consequências apocalípticas, alterarias alguma coisa?", o que eu tenho a dizer é que sou o mais feliz possível. Não alteraria nada no meu passado nem em nada do meu presente porque é aquilo em que fui construído e é aquilo que eu sou e serei. As minhas escolhas, os meus acontecimentos, bons ou maus, certos ou errados, felizes ou infelizes, são meras efemeridades de tudo o que sou. Efemeridades que me afectarão, mas que dessa forma deixam marca naquilo que sou. E mais virão e mais marcas deixarão naquilo que serei.

2011/10/10

Do combate ao novo acordo ortográfico

Informo o caro leitor, ou a cara leitora se de uma leitora efectivamente se tratar, que, até há bastante pouco tempo, tinha uma posição ambígua quanto ao acordo ortográfico. Sim, eu como pecador me confesso. Mas não mais. Pensei muito sobre a questão, consultei o que devia ter consultado antes, vi o que especialistas tinham a dizer sobre o assunto e, finalmente, vi o que não especialistas tinham a dizer sobre o assunto. Em qualquer um dos casos obtive um não: "Não, Tiago, o novo acordo ortográfico não é algo de bom. Vá agora desvia lá o olhar e vai ver filmes badalhocos ou algo mais educativo". E, por isso, depois de chegar à minha conclusão, tive que pensar, como pequeno lutador que sou, em formas e maneiras de combater o acordo. E é disso que este texto trata. Ora, sendo eu um comum cidadão - apesar de pequeno lutador - não há grande coisa que possa fazer. Tivesse eu mais poder e seria tudo mais fácil (aah, a ironia: bradam aos céus e a quem os quiser ouvir que a democracia, esta que temos, é a melhor que podia existir e depois um comum cidadão - aquele que devia ser a base e os alicerces do poder democrático - não pode fazer nada), ou dinheiro, ou ambos, como parece ser sinónimo neste nosso país à beira mar plantado. Mas há uma coisa que posso, efectivamente, fazer. Posso jogar pelas regras e apodrecer o jogo por dentro. Explico.

Tomemos em consideração três palavras: "acção", "Egipto" e "facto". Todas estas palavras têm em comum uma consoante que estar lá ou não estar é igual ao litro, aparentemente. Mas, no entanto, uma delas perde definitivamente a consoante, outra fica com a consoante quando calha e a outra fica com a consoante, pelo menos, até ao acordo de 2025 (a haver). Ou seja, "acção", cujo 'c' é completamente mudo, perde a consoante; "Egipto", cujo 'p' é ou não lido pelas pessoas, dependendo de quem diz a palavra, pode perder ou não a consoante alegadamente muda; e, por fim, "facto", cujo 'c' provoca uma espécie de fecho no som "-(c)to", mantém-se inalterado.

É esta a medida mais polémica do acordo ortográfico e, também, a mais conhecida. O apagar de consoantes quase indiscriminadamente lança sobre a sociedade portuguesa e sobre o pessoal da área de letras um dilema bastante grande. É que, se se apagam as letras que não são lidas, os 'cc' e os 'pp', as próprias palavras mudam. "Directo", por exemplo: lê-se "di-ré-to" porque tem lá um 'c'; perdendo o 'c' nenhum linguista ou intelectualóide me pode impedir de ler o que está lá escrito na verdade, que é "direto", ou seja, "di-rê-to". "Acção", perdendo o 'c', deixa de se ler "Á-ção" para passar a ler "assão", sem acento na primeira vogal. O mesmo com "actor". Na sua excelente crónica desta semana na Revista Visão, escreve o humorista Ricardo Araújo Pereira:
"Recepção" escreve-se com 'p' atrás do 'ç'. É assim porque o 'p' provoca uma convulsão no 'e' - sem lhe tocar.
De facto, é isto o que acontece. Se não houvesse o 'p', "recepção" (lugar onde alguém recebe outras pessoas num estabelecimento, geralmente comercial) seria homófona de "recessão" (aquilo que os ministros das finanças e economia insistem em meter o povo - mas não os ricos), e, como o leitor mais arguto terá já percebido, não são homófonas.

Portanto, o que eu proponho ao caro leitor, à cara leitora e a todos a quem este texto chegar, é jogar pelo jogo dos pseudo-intelectuais e pseudo-linguistas e ler as consoantes outrora mudas. Tornar as consoantes lidas, nem que seja só uma pequena "convulsão", como lhe chama Ricardo Araújo Pereira, um pequeno reflexo vindo do fundo da garganta que faça com que os outros pensem "então mas que raio". Continuem a escrever com o antigo acordo. Insistam e resistam. Inovem a fala, ponham lá as consoantes que fazem falta para as palavras se perceberem. Não deixem que a nossa língua nos seja roubada por uma elite - a língua é de todos e, se for para matar, ao menos que morra de forma democrática. 

(Post publicado em simultâneo no blogue Bananaphone)

2011/09/11

Do 11 de Setembro estadunidense

(Sim, escrevo estadunidense para me referir aos habitantes dos Estados Unidos da América. Não, não sou brasileiro.)

Assinala-se hoje uma década decorrida dos ataques cruéis ao World Trade Center e ao Pentágono. Esses ataques foram uma surpresa para o mundo, uma demonstração de falhas naquele que se gabava de ser o melhor país do mundo. Apesar de vis, cruéis e bárbaros, os ataques de 11 de Setembro de 2001 foram importantes, não somente para os Estados Unidos da América mas, sobretudo, para todo o mundo. Não falo certamente da importância da evolução súbita que houve nos sistemas de segurança aéreos - quem souber fazer as coisas decentemente consegue infiltrar uma bomba num outro sítio onde causará ainda mais vítimas e onde passará uma mensagem ainda maior. Nem falo tampouco da chamada "guerra ao terrorismo", cuja única coisa que trouxe foi um sentimento de insegurança terrível para o povo americano e não só.

Falo, isso sim, do mundo inteiro, a uma maior ou menor escala, ter começado a perceber as coisas horríveis que os Estados Unidos da América são capazes de fazer. Entraram, depois do 11 de Setembro, numa guerra infinita, numa alegada "guerra contra o terrorismo", com um inimigo em mente - Osama Bin Laden. A morte injustificada de milhares e milhares de civis inocentes, o sangue derramado de crianças, mulheres e homens, não são danos colaterais - é crime de guerra! A invasão de países soberanos sem a sua permissão viola todos os acordos de guerra estabelecidos depois da II Guerra Mundial! Os Estados Unidos da América, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, todos os países seus membros e todos os que invadiram o Afeganistão, o Iraque e o Paquistão, causando a morte de 48.644 afegãos e de 1.690.903 iraquianos inocentes deveriam responder em Haia e ser punidos pelos seus crimes!

Não se tratava já de uma invasão preventiva e qualquer um que ache isso ou é idiota ou tem os olhos e os ouvidos tapados do mundo. Não se tratava de uma medida de combate ao terrorismo. Tratava-se da sede de demonstração de poder tipicamente estadunidense, da sua sede de imperialismo e da vontade de conquistar povos, repito, soberanos.

Não é assim que se combate o terrorismo. O terrorismo é combatido percebendo as suas origens. Não tem origem no fundamentalismo religioso - embora isso ajude. Não tem origem num psicopata qualquer - embora isso ajude. Tem origem, isso sim, em algo mais distante, como a invasão dos Estados Unidos da América ao povo e país afegãos no final da década de 80 e deixar aquilo na miséria. Tem origem nas desigualdades, não só sociais, mas também políticas e de género, existentes nesses países e encorajados pelos seus invasores da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Tem origem no sofrimento dos povos às mãos de déspotas apoiados e controlados - muitas vezes - pelos Estados Unidos da América (olá Pinochet - também de um outro 11 de Setembro, tão criminoso como este).

Se os Estados Unidos da América são alguma coisa ao terrorismo não é combatentes - é apoiantes e grandes impulsionadores à escala mundial.

Mas não o povo estadunidense. Esses, obviamente, não têm culpa do sistema. O mesmo sistema que os molda desde crianças para pensarem que tudo está bem, que os canalhas dos muçulmanos, dos comunistas, dos gays e dos pretos é que estão mal. Eles não têm culpa.

E, por isso, no dia de hoje, 11 de Setembro de 2011, dia em que se assinala o décimo aniversário dos ataques terroristas às Torres Gémeas e ao Pentágono, estou com os meus pensamentos virados para as 2.976 pessoas que perderam a vida nas torres. Estou com os milhares que conheciam alguém ou que tinham pessoas queridas e amadas nas torres na altura do ataque e que, infelizmente, perderam a vida. Mas estou também com os meus pensamentos virados para os soldados que morreram numa guerra que não é a sua - americanos e locais. Estou com os meus pensamentos virados para 1.739.547 de inocentes, homens, mulheres e crianças com toda uma vida pela frente, mortos às mãos de de uma guerra que nunca pediram nem desejaram. Para todos eles, sem excepção, ao contrário do que é feito por muitos: Ave atque vale

Aeternum vale.

2011/07/14

De siglas e significados

Tive bastantes dúvidas se haveria de escrever este texto aqui ou não. Ponderei até criar todo um novo blogue só para estes pensamentos. Mas achei que não fazia sentido. São questões que me são caras e que acho que neste espaço tenho todo o direito de pôr o que acho que deve ser posto. E isto, acho, tem que ser publicado nalgum sítio - porque não aqui?

Em conversa com uma amiga de quem gosto muito, tão sensível como qualquer pessoa mentalmente sã relativamente às questões dos direitos das minorias, cheguei à conclusão que há um certo artificialismo nas designações que se usam e que, em último caso, só servem para separar mais do que para unir.
Ora, sejamos honestos connosco próprios. Que diferenças é que há entre um gay e uma lésbica? Bem, claro, para além das óbvias - um gosta de homens e a outra gosta de mulheres. Mas, pondo isso de parte, que diferenças há entre um homem que gosta de homens e uma mulher que gosta de mulheres? Ambos conseguem perfeitamente amar o parceiro ou parceira, ambos conseguem ter afecto, dar e receber carinho... Ambos são homossexuais. Então, para quê diferenciar um homossexual do sexo masculino de uma homossexual do sexo feminino? Porquê separar o L e o G em LGBT(Q) em vez de ficar tudo englobado num grande H?

Repare-se. Poderá ser argumentado que se trata apenas de uma questão de semântica. Ou uma questão prática - gay e lésbica são palavras mais curtas que homossexual. Ou até se poderá argumentar que se trata de uma questão que se convencionou, que é assim e pronto. Refuto estes argumentos de forma bastante simples. Trata-se, obviamente, de uma questão de semântica. E aí é que reside o grande problema. É que as palavras são símbolos elas próprias. Em sendo símbolos, sabe-se que representam algo, mas não é apenas a palavra em si que representa algo, não é apenas o som, as letras que a compõem - é também o contexto. Analisemos a forma como as palavras 'lésbica' e 'gay' estão inseridas na sigla LGBTQ: separadas. E não se pode ignorar esse facto. Separadas semanticamente, separadas praticamente. De resto, não é mais prático escrever gay e lésbica do que escrever homossexual - a diferença é de uma letra e nunca mal nenhum veio ao mundo por alguém ter de inserir mais um caracter. Nem se trata tampouco de uma convenção e, mesmo que se tratasse, as convenções que se consideram obsoletas - e quero desde já dizer que acho a sigla LGBTQ obsoleta e avisar que vou propor mais à frente uma nova designação para a comunidade - são demolidas e sobre os seus restos construídas convenções ou ideias mais modernas e refrescantes.

Porque não juntar, então, o L e o G num só H? Eu explico porquê: porque há uma relutância heterossexista em fazê-lo e isso afecta, ainda que o possa afectar a um nível inconsciente, os activistas da comunidade. É sabido que há um certo desagrado por parte dos heterossexuais para com a comunidade homossexual. No entanto, pergunte-se ao homem heterossexual médio se não gostariam de ver duas mulheres aos beijos e eles dizem que sim. Até algumas mulheres gostariam de ver dois homens aos beijos, sobretudo em algumas culturas de que tenho conhecimento (a japonesa, por exemplo, onde a maior fatia do bolo do yaoi é consumida por mulheres japonesas). Daí a necessidade de separar as águas - lésbicas para um lado, gays para o outro. Mas o que provoca isto? A pensar nesta questão deparei-me com um assunto particular de um rapaz que esteve em vias de namoro com uma rapariga antes de ela se aperceber que era lésbica. Esse rapaz nunca perdeu a esperança de alguma vez a voltar a conquistar e a levar para o lado heterossexual da Força. E creio que é disso que se trata. LGBT, ou só LGB, ou ainda LGBTQ, foram siglas que surgiram logo, mas por mais variantes que houvesse, o L e o G estavam sempre irremediavelmente separados. Não é uma certeza, mas desconfio que isto se deve ao facto de haver uma espécie de esperança colectiva por parte dos heterossexuais de heterossexualizar, cada grupo à sua maneira, os gays e as lésbicas. Daí a necessidade de os manter separados. Até porque, mantendo-os separados, cria uma fraca união que, por vezes, gera a discussões que eu já assisti do género "como é que sendo mulher és capaz de beijar algo sem ser um homem" ou "como é que tu és capaz de gostar desse penduricalho que vocês têm aí". Essas discussões - felizmente raras e reveladoras de homofobia dentro da homossexualidade - são fruto da separação e das barreiras que existem entre as L's e os G's.

Assim, a minha proposta passa, numa primeira fase, por unir essas duas siglas. Não faz sentido não tratar os bois pelos nomes e complicar. LG é, no fundo e à superfície, um H. Por isso, numa primeira fase, a sigla melhor é HBTQ. Mas não acaba aqui.

O B tem de continuar separado. Não fazia sentido que não fosse assim. É uma pessoa que se sente sexual e afectivamente atraída por dois sexos. Mas a designação de T está muito mal representada. Isto porque T pode significar duas coisas, que são diferentes: transexual e transgénero. E, em alguns casos, travesti, mas deixemos esse caso de lado, que terei outros momentos e outras alturas para o debater. Transexualidade é, literalmente "através dos sexos", ao passo que transgénero é "através dos géneros". Se considerarmos que sexos existem dois, mas que género pode ser uma variedade virtualmente infinita de designações dentro de um espectro, temos que os transexuais são pessoas que vão para lá do seu sexo e se adaptam a determinadas realidades do sexo oposto. Transgéneros são aqueles que, pertencendo a um determinado sexo, se vêem como sendo uma pessoa para lá disso, para lá da designação homem/mulher, masculino/feminino. É um assunto dentro do qual, confesso, não estou muito dentro, mas numa hipótese que tenha mais aberta de fazer uma melhor investigação, fá-la-ei.

Assim, mantendo inalterado o B, temos dois T's, ou três, se retirarmos os travestis da designação transexual. Temos então a sigla em construção HBTT. E o Q?

Q é de queer. Literalmente, estranho. Se, de início, esta palavra tinha uma conotação altamente pejorativa, a pouco e pouco foi sendo adoptada e acarinhada pela comunidade HBTT (sim, começa já em funções) e passou a designar ora uma coisa, ora outra. Passou a designar ora as pessoas mais flamboyant (independentemente da sua sexualidade), ora todo e qualquer homo ou bissexual ou transexual ou transgénero que estivesse muito entranhado na cultura heterossexual, assim, estranho, literalmente, a essa cultura. Em ambos os casos a diferença é crucial. É a diferença entre termos uma sigla com cinco letras ou uma sigla com uma letra apenas.

Se se considerar queer como sendo os flamboyant sexual-independentes, temos uma sigla com cinco letras: HBTTQ.

No entanto, considerando queer como sendo qualquer orientação sexual ou de género diferente da heterossexual num mundo heterossexual, temos uma sigla apenas com uma letra: Q. Não vale a pena complicar. Para quê usar etiquetas se fazem todos parte de um grande grupo Q? Para quê subtrair valor de algo que é o mais valioso de todos os nomes? Comunidade Q. Até soa bem. Como um condomínio privado, quase. 

Mas, é certo, nem todos terão as mesmas interpretações. Assim, as duas siglas que proponho em vez de uma obsoleta LGBT(Q) são HBTTQ ou Q. Pessoalmente sou afecto à segunda.

Mas, claro, a velha questão. Isto são tudo artifícios. A grande problemática é que HBTTQ, LGBT(Q) ou Q são tudo coisas inúteis se virmos a questão bem de fundo, aquela questão que eu não me canso de repetir. É que o ideal não é arranjar uma sigla nova, moderna e fresca. A questão é que ninguém é heterossexual, ninguém é homossexual, bissexual, transexual, transgénero ou queer. Somos todos pessoas. Assim, anseio por quando a humanidade deixar esses rótulos de lado e se juntar toda numa grande sigla, a maior delas todas, a que, no fundo, somos todos - P. De pessoas.

2011/06/24

Da naturalidade da homossexualidade

Há "pessoas" (justificam-se as aspas pela minha incerteza da 'pessoalidade' desses seres) que dizem que a homossexualidade é, cito, 'contra-natura'. Curta e grossamente, só digo isto: não é. A homossexualidade existe noutros animais, comprovada e aceite no meio científico, em algumas aves, mamíferos, insectos e répteis. Então, se a homossexualidade está presente em animais tão diferentes como um bisonte ou uma libelinha - que não têm centros de prazer sexual (já explico o porquê deste reparo) -, até que ponto poderão ou não ser verdade alguns argumentos em relação à homossexualidade?

Há uma concepção bastante aceite que teoriza que a homossexualidade é um processo evolutivo que vem unicamente do prazer em ter sexo. No entanto, esta concepção, para além de não ser comprovada com qualquer dado científico, é bastante errada como um argumento contra a homofobia. Diria mesmo que é uma concepção a roçar o perigoso. As intenções serão, por ventura, boas. Percebe-se porque é que algumas pessoas pró-direitos LGBT usam esse argumento: que há de mais natural que a evolução? Apesar disso, eu, um defensor desses direitos, recuso visceralmente esse argumento. Por uma questão muito simples. Até acredito que seja um processo evolutivo qualquer (de memória, recordo-me de um estudo a dizer que as netas de lésbicas têm índices de fertilidade duas vezes superiores que a média das mulheres), mas não este. Porque é este argumento que leva às ideias mais perigosas e erradas acerca da homossexualidade. Se a homossexualidade se justificasse apenas pelo prazer sexual, era o alívio teórico de todas as bestas de duas patas que reclamam que a homossexualidade é igual à pedofilia ou à zoofilia. Para além do mais, surge agora o caso da homossexualidade noutros animais. É certo que são animais que tiveram processos evolutivos completamente díspares do nosso, mas se a homossexualidade se devesse à evolução pela maximização do prazer, esta não ocorreria em animais sem prazer sexual.

Por outro lado, não se deve descartar de todo a hipótese do prazer sexual como resultado de uma qualquer evolução. Mas não dizer que é o único pilar de desenvolvimento da homossexualidade enquanto resultado natural. A capacidade de um ser humano homossexual se apaixonar, ser capaz de ter uma relação monogâmica perfeitamente estável e de nutrir uma amizade profunda pelo seu companheiro (perdoem-me as feministas, mas na língua ainda sou muito conservador), são capacidades comuns aos heterossexuais e que não serão, porventura, o resultado directo do prazer sexual. Assim sendo, de onde vem a homossexualidade?

Repudio teórica e praticamente a expressão tão popular 'opção sexual'. É uma mentira descarada, infelizmente tão propagandeada pelos nossos fracassados, ignorantes e incompetentes media. E quem pensa de tal forma, usa tal expressão ou aceita o seu uso corrente é, ou estúpido, ou preguiçoso ou ignorante. Quando me falam nisso eu tenho o hábito de interrogar prontamente em que fase da vida do meu interlocutor é que ele tomou a opção de ser heterossexual. Ou quando é que lhe deram a escolher: "Olha, podes ser heterossexual, que é gostar do sexo oposto, ser homossexual, que é gostar do mesmo sexo que o teu, ou ser bissexual, que é gostar de ambos os sexos". Geralmente fico sem resposta. E ainda bem, porque arriscava-me a ridicularizar qualquer tentativa de argumentação que daí viesse. Porque raio é que os homossexuais, tendo a possibilidade de viver uma vida sem qualquer tipo de discriminação ou stress, escolheriam ser homossexuais? A não ser que se seja muito inconformista, não se trata de uma opção, mas sim de uma orientação natural da sexualidade. A questão é, qual a natureza dessa orientação natural? Genética? Ambiental? Neurológica? Aparentemente, todas as três hipóteses poderão estar correctas, de acordo com algumas experiências científicas, nomeadamente as que são efectuadas tendo como alcance alguma família mais próxima.

Nas suas experiências de 1993, o Dr. Dean Hamer encontrou um marcador genético no cromossoma X a que se deu o nome de Xq28. Acredita-se ser este o marcador responsável pela homossexualidade. Apesar de refutado já por três vezes, fazendo uma defesa deste argumento científico, o Dr. Hamer conseguiu defender com sucesso a sua descoberta, sustentada por observações de hereditariedade em que se verificou que 67% de irmãos homossexuais partilham o 'gene gay' e, ainda, que havia 13% mais de hipótese de um desses irmãos ser homossexual se um tio materno também o for. Apesar de experiências posteriores terem revelado estes testes inconclusivos, a confirmarem-se, é a prova mais sólida contra a alegada 'cura da homossexualidade' e outras diarreias mentais.

Também algumas diferenças estruturais e funcionais no cérebro de homossexuais em relação aos cérebros dos heterossexuais reforça ainda mais a ideia de uma naturalidade da homossexualidade. Ressalve-se, no entanto, que são diferenças estruturais e funcionais não em termos de deficiência (o que seria, no mínimo, absurdo), mas ao nível de diferenças estruturais que existem naturalmente entre um homem e uma mulher, entre dois homens, entre um jovem e um idoso...

Em algumas observações em relação à influência do meio, há a forte sugestão da importância do ambiente na determinação sexual de alguns indivíduos. Note-se a hipótese proposta por alguns cientistas de que um pai distante e uma maior afecção por parte da mãe é quase padrão de um homossexual masculino. 

Há ainda o resultado de um estudo realizado com gémeos, em 2008, que diz que a um nível primário há uma condicionante genética e hereditária e, depois, a uma maior escala estão os efeitos ambientais, que podem inclusive incluir condicionantes pré-natais.

É muito simples ser homofóbico. A sociedade, directa ou indirectamente, quase que nos encaminha nessa direcção. Mas não se trata de se ser contra ou de se ser a favor da homossexualidade. Eu não sou a favor nem contra pessoas com olhos verdes, nem a favor ou contra anões. A homossexualidade, como qualquer outra característica humana (e não humana), tem condicionantes naturais, que são impossíveis de prever ou de contrariar. Não se trata de um gosto ou de uma opção. Não se trata de se ser pró ou contra a homossexualidade. Tratam-se de seres humanos. Seres humanos a que calhou na vasta improbabilidade cósmica da genética e do ambiente gostarem de indivíduos do mesmo sexo. Trata-se, sim, de se ser pró ou contra os direitos da população LGBT. Trata-se de aceitar uma relação entre pessoas do mesmo sexo com todos os direitos de uma relação entre duas pessoas de sexo oposto, porque, na verdade, a única diferença é a genitália de um dos intervenientes da relação. Os heterossexuais são capazes de amar e os homossexuais também. Os heterossexuais são capazes de chegar a casa e falar do seu dia com a pessoa que amam e os homossexuais também. Os heterossexuais são capazes de ter uma relação estável e os homossexuais também. Os heterossexuais são capazes de manter todos os votos de um casamento e os homossexuais também. Os heterossexuais são capazes de cuidar de uma criança com todo o seu amor e os homossexuais também. A questão é se lhes é dada essa oportunidade. Por mim dou-a. Por mim, enquanto cidadão consciente e socialmente activo, exijo que sejam concedidos os mesmos direitos à comunidade LGBT que são concedidos às demais pessoas. Exijo que lhes seja reconhecido legalmente o direito de se amarem sem serem olhados de lado ou vítimas da mais vil e cruel demagogia. Exijo que as pessoas LGBT possam andar de mão dada ou dar um beijo na rua sem ter, ou rebarbados a olhar, excitados, ou rebarbados a olhar, reprovadores. Exijo que se reconheça a capacidade de parentalidade dos LGBT, com todas as suas capacidades e carinho pela criança que terão.

Mas é um longo e duro caminho que não se esgota com a aprovação de uma ou outra lei nos órgãos competentes. Esse é o início. O grande fim é mudar a mentalidade mesquinha e pequena que impera na sociedade. E começar a mudá-la, uma pessoa de cada vez. Não ter medo da discussão. Mas ser também capaz de reconhecer casos perdidos, até para bem do defensor dos direitos LGBT. Mas ser igualmente capaz de mandar à merda quem não merece uma discussão.

2011/05/01

Porque não ser de esquerda

Mais do que "porque não ser de esquerda", antes, talvez a pergunta a ser feita seja "para quê ser de esquerda?". E é uma pergunta que trás um duplo sentido: para quê ser de esquerda se quem nos governa desde 1926, primeiro mandato de Salazar à frente da pasta das Finanças, é de direita, e, para quê ser de esquerda, ponto. Para o primeiro "para quê" a resposta é muito simples. Não faz sentido ser-se de esquerda porque a direita trás o conforto do que já é conhecido. PS, PSD e CDS-PP já são conhecidos em cargos governamentais e já se sabe o que se espera. Ainda que os direitos sociais diminuam, ainda que o país possa cair num poço por má gestão, ainda que se possa voltar a tempos remotos onde só quem tinha dinheiro é que tinha saúde e educação, ainda assim, antes o conforto da imutabilidade. Para quê, então, ser de esquerda, de todo? Para quê ter-se a confiança de que os nossos direitos são salvos, se vão ser espezinhados mais cedo ou mais tarde? Assim, não vale a pena, sequer, ter direitos!

O que nos leva ao próximo ponto. Porque não ser de esquerda. Ora, não vale a pena ser-se de esquerda se não se quiser ver o aparelho produtivo nacional a ser desenvolvido - só a direita é a garantia da sua destruição em prol das grandes multinacionais estrangeiras que comem a mão de obra barata em Portugal. Não vale a pena ser-se de esquerda se se quiser pertencer à minoria que mete milhões ao bolso sem pagar impostos - os banqueiros: só a direita garante transferências seguras para offshores e que os grandes accionistas continuem a ganhar os seus milhões sem serem justamente distribuídos pelos trabalhadores ou investidos na criação de novos postos de trabalho. Não vale a pena ser-se de esquerda se se quiser pagar cada vez mais pela educação dos vossos filhos e netos, sem qualquer apoio social ou garantia de gratuitidade da frequência nas escolas - só a direita consegue fazer com que o ensino seja tendencialmente pago, sem apoio social na compra de manuais e material escolar. Não vale a pena ser-se de esquerda se se acha que o Serviço Nacional de Saúde não tem condições nem precisa de ser melhorado, porque se tem dinheiro para se ir a um hospital particular - só a direita é que quer acabar com o SNS. Não vale a pena ser-se de esquerda quando não se é precário nem se quer que estes trabalhadores tenham direitos iguais e justos - só a direita quer mais precários para os patrões gastarem menos e explorarem mais. Não vale a pena ser-se de esquerda se não se quiser um diálogo activo e construtivo com os sindicatos na procura de melhores soluções para os trabalhadores do país - só a direita ignora consecutivamente os maiores representantes dos trabalhadores portugueses. Não vale a pena ser-se de esquerda quando não se quer que toda a gente, independentemente do género, nacionalidade, religião ou orientação sexual, tenha os mesmos direitos - só a direita consegue atropelar os direitos das mulheres, ser contra a imigração, a favor de uma educação e de uma sociedade cristãs e contra os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e transexuais. Não vale a pena ser-se de esquerda se não se quiser que a riqueza seja bem distribuída entre todos, de forma igual - só a direita tem o poder de concentrar a riqueza numa pequena minoria, mas ser insensível aos milhões de pessoas no limiar da pobreza. Não vale a pena ser-se de esquerda se não há uma preocupação com a falta de investimento no emprego no nosso país - só a direita tem a estrondosa capacidade de olhar para o lado quando vê uma família com o casal desempregado a recorrer ao Banco Alimentar Contra a Fome. Não vale a pena ser-se de esquerda quando se quer ver um ambiente destruído e um desenvolvimento insustentável do ponto de vista ambiental - só a direita consegue não perder horas de sono com as árvores centenárias abatidas a favor de interesses económicos.

Não vale a pena ser de esquerda. Vota direita. Vota PS ou PSD ou CDS-PP.


MAS!
Se te preocupas com o nosso aparelho produtivo, se não pertences à minoria milionária, se te preocupas com o sistema público de ensino, se queres que o Serviço Nacional de Saúde seja de qualidade e público, se te preocupas com a situação dos precários no nosso país, se achas que a defesa dos trabalhadores passa por um diálogo eficaz com os sindicatos, se queres que toda a gente tenha os mesmos direitos, se achas que a riqueza em Portugal é mal distribuída, se defendes a criação de postos de trabalho ou se queres uma defesa activa do meio-ambiente, vale a pena ser de esquerda! Vota esquerda! Vota em quem te defende! Vota em quem está do teu lado nas lutas laborais! Vota em quem te ajuda todos os dias no Parlamento! Vota em quem se preocupa contigo, jovem precário, mulher ou gay! Vota em quem defende o planeta, único que temos! Vota na esquerda se gritas "BASTA"! Mas vota. E dia 5 de Junho vota e não te esqueças de quem te defende sempre e desde sempre te defendeu. Vota CDU.

2011/04/18

De "Nobrezas"

No fundo, as críticas que eu tenho a fazer não são novas. Escrevi a 14 de Janeiro deste mesmo ano, a propósito do candidato presidencial Dr. Fernando Nobre, que o senhor era, enquanto candidato, "um puto mal-comportado". Acabei por não desenvolver muito essa ideia, mas o que tinha em mente nessa altura prendia-se basicamente com o facto de o Dr. Fernando Nobre, esse apartidário, esse apolítico, esse crítico das mais básicas e das mais importantes instituições do nosso sistema democrático, os partidos, já tinha sido mandatário de tudo e mais umas botas, do Bloco de Esquerda ao Partido Social-Democrata. De todos os partidos com assento parlamentar, aliás, directa ou indirectamente, o Dr. Fernando Nobre só não foi mandatário de nada pelo CDS, pelo PEV e pelo PCP. O Dr. Fernando Nobre é um puto mal-comportado da política porque não sabe a quantas anda. Tão depressa é de esquerda, como de seguida é de direita, como de seguida rejeita isso tudo e o seu passado político para se declarar como independente, como de seguida é candidato a deputado (e a Presidente da Assembleia da República) pelo PSD, como ainda antes de ser eleito diz que é um homem de esquerda e provoca uma valente enxaqueca a todos os que o tentam analisar politicamente, este vosso amigo incluído. Não obstante, tentá-lo-ei.

O Dr. Fernando Nobre, animal político, é uma espécie demagógica, populista, eleitoralista, portadora de Alzheimer e sedenta de poder. É uma espécie híbrida, não alargada no espectro político como se poderia pensar, mas estreita e indecisa, ora à esquerda, ora à direita.

O Dr. Fernando Nobre prometia, enquanto candidato presidencial, as coisas mais demagógicas e intolerantes em democracia que se podiam imaginar (e que podem ler no link acima, no meu post sobre esse assunto). Agora, enquanto candidato pelo PSD, promete coisas radicalmente diferentes, nomeadamente a privatização de sectores estratégicos do Estado, fundamentais para a constituição de riqueza. Claro que mais ficará de fora quando se souber o programa do PSD, até agora envolvido em mistério, em parte por causa do tempo que ainda falta para as eleições, em parte por causa de todas as contradições ideológicas de que o partido sofre.

O Dr. Fernando Nobre sabia, mais grave ainda, que 90% das coisas que prometia se fosse eleito Presidente da República não seriam viáveis e eram próprias de alguém anti-democrático. Mais ainda, numa ânsia de ganhar a simpatia dos portugueses, não hesitou em sacar da carta do seu passado. Acusou até, em debate, Francisco Lopes, candidato apoiado pelo PCP e pelo PEV (e, informalmente, pela Ruptura/FER, mas o BE não deve gostar muito que se fale nisso), enquanto deputado, de nunca ter criado nenhum emprego em Portugal, ao passo que ele, enquanto fundador e Presidente da AMI já tinha criado uns quantos mais. Abstraindo-nos do facto de a AMI funcionar também muito à base do voluntariado, seguindo a lógica do Dr. Fernando Nobre, então deveria ser o Belmiro de Azevedo ou o Pinto Balsemão o Presidente da República. E, já agora, porque não transformar isto numa plutocracia formal e inserir isso na constituição? Já agora havia mais transparência da parte de quem ocupa, geralmente, os lugares de poder.

Mas dizia o Dr. Nobre isto tudo porquê? Porque queria ganhar votos. Tão simples como isto. Ele sabia que não ia poder cumprir nada do que foi prometendo ao longo da campanha eleitoral. Ele apenas queria ganhar as eleições, só porque sim. Só porque queria ser Presidente da República.

E tem sede de poder. Não ficando satisfeito com uma derrota nas Presidenciais, logo, derrotado na corrida para primeira figura do Estado, entra na corrida para segunda figura do Estado e vice-Presidente da República. Que é, já agora, quem mais ganha na Assembleia da República.

Em analogia, é a típica criança que promete aos pais fazer os trabalhos de casa, sabendo que não prestou atenção à aula e não sabe um corno da matéria, pede um chupa daqueles redondos e bem grandes numa loja de doces, não o ganha, faz birra, diz que não gosta dos pais, mas logo está a bajular a mãe para que lhe compre antes um saquinho de gomas.

Não me surpreendeu, esta atitude do Dr. Fernando Nobre. Foi-me indiferente. Não é nada de que eu, ao contrário de muita gente, não estivesse à espera. Cheguei a comentá-lo com pessoas próximas e a escrever sobre isso num comentário num blogue pró-Nobre (ao que fui completamente insultado e linchado em praça pública). Sinceramente, pior que alguns partidos políticos, só alguns políticos. Não são os partidos, num país com um regime como o nosso, que são uma ameaça à democracia - são os plutocratas, demagogos, eleitoralistas, populistas, proto-fascistas como o é o Dr. Fernando Nobre. E se alguém quiser que eu não fale, só com um tiro na cabeça é que eu me calo.

2011/03/24

Da rejeição do PEC4 e algumas consequências

O malfadado PEC4 estava destinado ao falhanço, logo desde a primeira hora. Há várias ilações a tirar desse falhanço e uma consequência que já aconteceu. A consequência, óbvia que é, tratou-se da demissão do Primeiro-Ministro José Sócrates. A isso já se pode considerar uma pequena vitória. Mas o que não se compreende muito bem na opinião pública é que a demissão de José Sócrates foi apenas e tão somente a consequência da reprovação do PEC4 que - da esquerda à direita - foi considerado como sendo mau para o país. Apenas o PS não percebeu isso.
A ilação principal que se pode tirar da reprovação do PEC4 é que nem o PEC original, do ano passado, deveria ter sido aprovado. Porque as medidas do PEC4 são substancialmente complementares às medidas dos sucessivos PEC's e Orçamento de Estado. Não vou querer desculpabilizar o PS, mas um partido que vota favoravelmente ou que se abstém - PSD - votando contra, de seguida, a medidas complementares e previsíveis, é um partido incoerente e que perdeu o seu próprio rumo num mar de oportunismo. O oportunismo e o tacitismo político do PSD foi mais que evidente. Os outros partidos - à excepção do PS - votaram coerentemente contra, como, aliás, já o tinham feito antes nos outros PEC's e com o OE.
Outra ilação que se pode tirar é a de que o Governo não tinha a margem para a prepotência com que se passeava por Bruxelas. O Governo era um Governo de um partido com maioria relativa na Assembleia da República e comportava-se como se ainda estivesse na anterior legislatura da maldita maioria absoluta. Na representação externa do país, nomeadamente em eventos da competência da União Europeia, o Governo agia, como agiu no PEC4, de costas voltadas para o seu próprio país mas, ao mesmo tempo, de rabo e calças baixas para a Alemanha, a França e a restante Europa riquinha.
Uma terceira ilação que se pode tirar é a de que o PEC4 não se viu não aprovado. Viu-se rejeitado. Essa rejeição de um Pacto de Estabilidade e Crescimento, no quadro interno, significa apenas que a austeridade não vai continuar com mais medidas para fazer crescer a economia à custa do povo, uns mais que outros. No entanto, no quadro europeu, significa que a Alemanha e a França vão ter que começar a fazer o trabalho de casa. Porque é que as medidas de austeridade portuguesas são tão aclamadas no exterior apesar de obviamente gravosas, não só económica, mas socialmente? Porque lá fora sabem que enquanto for a raia miúda a fazer os sacrifícios e a caminhar na corda bamba, os grandes e fortes têm oportunidades de crescimento sem ser preciso mexer uma palha. Explico, mesmo não sendo economista e de essa área ser quase oposta à minha: o dinheiro não é infinito. Há um número finito de dinheiro que viaja em condições de dívida ou de troca. Ora se os pequenos se endividam e se os sucessivos PEC's-maquilhagem não servem para nada, os grandes emprestam dinheiro sob a forma de dívida. "Ah, que gesto tão bonito!" pensarão alguns, ingenuamente. Não o é. A dívida vem acompanhada de juros, por norma altos, que são um pequeno extra que se tem que pagar para além do dinheiro que foi emprestado. E como é que se faz dinheiro para pagar o que foi emprestado? Produzindo e vendendo riqueza. A tal troca. Troca essa que países grandes dominam e não querem deixar de dominar, preferindo emprestar uns patacos, ou ver entidades privadas a emprestar (os chamados de mercados), vendo países pequenos a afundar-se cada vez mais a troco do crescimento dos grandes. Ora, isto para chegar onde? Para chegar à ilação de que, com esta chamada "crise" política (que não passa de um exercício legítimo de democracia e do poder da Assembleia e, proximamente, provavelmente, do povo), com a impossibilidade de pôr em prática o PEC4 e com a impossibilidade da entrada do FMI em Portugal (pela inexistência de um Governo de facto), os grandalhões vão ficar chateados. Consequências da chatice deles? Uma delas, a mais drástica e definitiva, a exclusão de Portugal da Zona Euro. Essa seria a maior de todas, já que o Tratado de Lisboa não permite a expulsão de nenhum país da "União" Europeia propriamente dita.

Ora, mas escrevia há pouco que a consequência da rejeição do PEC4 fora a demissão do Primeiro-Ministro. E, claro, há consequências a tirar disso também. Em primeiro lugar, embora quase certo que aconteça, a realização de novas eleições legislativas não é certa. Há todo um procedimento legal e constitucional que é preciso cumprir, nomeadamente que sejam ouvidos todos os partidos com assento parlamentar para verificar se há condições para a formação de um novo Governo, designadamente um Governo de coligação, maioritário na Assembleia da República. De seguida, se isso for rejeitado, o Presidente tem de convocar o Conselho de Estado e novamente os partidos políticos para proceder à dissolução do Parlamento e aceitação oficial da demissão do Primeiro-Ministro. Consequentemente terá de convocar eleições para, no mínimo, cinquenta e cinco dias depois da dissolução do Parlamento. Jorge Sampaio, das duas vezes que precisou de usar esse poder em circunstâncias semelhantes, demorou 10 dias a fazer tudo certinho e como manda a lei. Portanto, há ainda a possibilidade de não serem precisas novas eleições, embora esteja em crer que isso seja inevitável. No entanto, caso não as haja, há quatro grandes cenários possíveis, todos eles mudando de Primeiro-Ministro, do mais plausível para o mais risível: o primeiro é o de um novo Bloco Central, PS e PSD; o segundo é o de um Governo PS com o CDS-PP; o terceiro é uma Frente de Esquerda, com PS, PCP, PEV e BE; o quarto é um Governo de Salvação Nacional que poderia tanto ser PS, PSD e CDS, como PSD, CDS e uma ou mais das forças de esquerda, à excepção do PS.
Em segundo lugar, outra consequência que se pode tirar da rejeição do PEC4 é a de que a democracia portuguesa está em bom funcionamento. Rejeitou-se uma medida governamental e o Chefe de Governo demite-se. Dois casos se deixam mostrar de seguida: os partidos que dizem que era inevitável porque as políticas do Governo já foram longe demais; e os partidos que dizem que a crise política só desfavorece o país. Para esses cito a Dra. Manuela Ferreira Leite: "então suspenda-se a democracia durante seis meses, ponha-se tudo em ordem e volte-se à democracia quando esse tempo passar". O PS (vai daí também o PSD) já demonstrou ter tiques ditatoriais e de sede de poder. Mas chegar ao ponto de dizer que a crise política e a realização de novas eleições é algo de mau para o país vai para além do tolerável e roça o fascista. Roçar o fascista esse que já o Prof. Cavaco Silva tinha roçado na campanha para as últimas presidenciais quando disse que não podia haver segunda volta porque era um gasto de dinheiro para lá do comportável. Mas, não obstante alguns tiques fascistas e ditatoriais de alguma esfera política portuguesa, a nossa democracia está bem oleada e a funcionar que é um mimo. As eleições não são para ser de fim de mandato - são para ser quando necessário ao bom funcionamento dos órgãos de soberania e tantas quanto possível. São precisas e que se lixem as opiniões (que não passam disso, porra!) de mercados ou de merkels da praxe.
Uma terceira conclusão da demissão do Primeiro-Ministro em conclusão da rejeição do PEC4 é que os deputados, a maioria, soube ouvir os sinais e a população portuguesa que deu voz ao seu descontentamento em duas grandiosas manifestações, de 12 e 19 de Março, com centenas de milhares de pessoas a saírem às ruas mostrar que não querem PEC's que sejam penalizadores para os trabalhadores, os jovens, os desempregados e os reformados. Apesar de algumas reservas quanto à motivação que uma ou outra força política, regozijo-me com os meus órgãos de soberania enquanto português e pelo facto de, por uma vez, a maioria ter ouvido as vozes que mais precisam de ser ouvidas - as de quem pôs os deputados onde eles estão, a voz do povo.

Para terminar apenas um pequeno apelo. O PS e o PSD são apenas distinguidos por uma letra. O CDS-PP certamente (já deu mostras disso) irá aliar-se ao PSD, se não durante as próximas eleições, então num cenário pós-eleitoral. E a direita não é solução. O capitalismo e o receio dos mercados não são a solução. O neo-liberalismo e a veneração do patrão não são a solução. A solução passa pela esquerda. Só um reforço da esquerda e um aumento da sua representatividade na Assembleia da República podem tirar o país da crise em que se encontra. Só a esquerda tem a coragem de fazer essa coisa difícil que é pôr os trabalhadores e o povo à frente do poder económico e da banca. Só a esquerda é capaz de dizer basta à situação pornográfica que se vive no que toca à taxação dos lucros da banca. Só a esquerda é capaz de ver (será assim tão difícil?) que o crescimento económico passa pela produção de riqueza e que a produção de riqueza passa pelo investimento público e criação de novos postos de trabalho. Só a esquerda é capaz de ver o que se passa com as linhas ferroviárias que tanto mal fazem em não estar em funcionamento - ambiental incluído. Só a esquerda garante direitos sociais para toda a população, por igual e sem discriminação. Só a esquerda precisa do povo português nas próximas eleições porque o povo português precisa da esquerda na próxima legislatura. Votar CDU ou BE não é igual. Pessoalmente voto CDU, voto no socialismo, na igualdade e na defesa ambiental. Voto numa coligação da qual não me arrependi de votar e que nunca me deixou ficar mal. Voto num futuro melhor. Voto à esquerda. Voto esquerda.