2010/05/19

Carta a um Primeiro-Ministro

Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, Eng.º José Sócrates,
Antes de mais, bom dia. Como deverá ser óbvio, o senhor primeiro-ministro não me conhece. Como igualmente deverá ser óbvio, eu conheço o senhor primeiro-ministro. Não mais que da televisão, dos jornais e da rádio e de um ou outro vislumbre e um aperto de mão em tempos idos de campanha eleitoral, é certo, mas ainda assim, poderei dizer como qualquer outro português que conheço o meu primeiro-ministro. E é por achar que o conheço tão bem como qualquer outro meu (nosso) compatriota que lhe escrevo esta carta. E é, sobretudo, na qualidade de português de Portugal que lhe escrevo.

Senhor primeiro-ministro, o senhor saberá tão bem ou melhor que eu que o país atravessa uma grave crise. Não se pode dizer que é uma crise apenas economico-financeira, mas essa é a que mais se destaca e a que mais ajuda às outras crises. Essa crise é, diz-se, a pior de sempre. Não o saberei eu, mas, na minha incompetência, tenho de acreditar no que os profissionais me dizem. Dizia eu que a crise não tem apenas a ver com o dinheiro, tem a ver com a sociedade no geral. A sociedade está corrompida na educação, na saúde, na ciência e na cultura. Sobretudo nestes aspectos que são, sem querer descurar outros e perdoando-me o senhor primeiro-ministro o egoísmo, os que mais contacto têm comigo e aqueles dos quais posso dizer perceber mais um bocadinho que de economia, finanças ou agricultura.
Senhor primeiro-ministro, aplaudi de pé quando o senhor defendeu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Aplaudi de pé quando o senhor defendeu a legalização do aborto até às 10 semanas de gestação. Ainda aplaudo de pé a decisão da extensão das bolsas sociais escolares e os apoios sociais acrescidos para os universitários. Mas, senhor primeiro-ministro, há um par ou dois de coisas que não posso deixar de frisar. E são esse par ou dois de coisas que vão fazer com que esta carta não sirva para felicitações, porque são essas situações que ofuscam por completo o brilho das acções anteriormente mencionadas (entre outras, claro, que, ou não são do meu conhecimento, ou não foram devidamente divulgadas).

Senhor primeiro-ministro, o senhor diz ser patriota. Lamento, senhor primeiro-ministro, não acredito que o seja. Depois de ter o seu nome associado a certas práticas corruptas (inocente ou não, não sou nem juíz nem advogado, pelo que não me compete a mim fazer essas considerações), depois de ter ocultado estatísticas fundamentais aos outros partidos e ao povo português no geral, depois de ter centenas de milhares de manifestantes contra as políticas que obstinadamente os seus ministros insistem em levar avante, depois de se ter esquecido completamente que um governo deve servir, acima de tudo, para garantir que o bem-estar social seja atingido por meio de leis, acima, muito acima, senhor primeiro-ministro, do bem-estar financeiro da banca, depois de ter servido o meu, o nosso país, Portugal, de bandeja a outras nações como a Alemanha ou a França, depois de nos ter retirado, ao povo, soberania com a assinatura do Tratado de Lisboa, senhor primeiro-ministro, tenho a dizer que o senhor não é patriota. Tenho a dizer que o senhor, se fosse patriota, se quisesse realmente o bem da nação acima de qualquer outro interesse, já teria resignado ao cargo que ocupa há muito tempo. Defender o bem-estar da nação é isso mesmo, senhor primeiro-ministro, ser o primeiro a reconhecer que algo está mal e que não se é capaz de ocupar determinado cargo.

Senhor primeiro-ministro, temos os enfermeiros, os médicos e as farmacêuticas (pessoalmente, o diabo que as carregue, mas é uma questão pessoal, nisso o senhor primeiro-ministro não tem culpa) em polvorosa, e, o pior, nem é tudo em relação à mesma coisa - cada sector tem a sua queixa. Temos os professores e os educadores que reclamam desde o início por uma avaliação justa e por um estatuto da carreira docente digno de ser apreciado como tal. Temos mentes brilhantes em todas as áreas científicas que acabam cursos superiores e encontram-se desempregadas, quando deveria ser o Estado, o governo, a dar a mão a esses jovens. Temos dos investimentos em cultura mais residuais que conheço - que não é muito, admito, mas também não é muito o que o governo ajuda em relação à cultura -, não apoiando o teatro decentemente, não apoiando a literatura decentemente, não apoiando o cinema, a música e as restantes artes.

Senhor primeiro-ministro, esta carta será, para si, certamente mais uma de um cidadão descontente. Não é. Porque para se estar descontente, senhor primeiro-ministro, é preciso haver um contra-peso e haver contentamento. Senhor primeiro-ministro, o meu caso é ainda pior que os casos de descontentamento e, por não estar a gostar do meu caso, é que resolvi fazer este pouco. Eu, senhor primeiro-ministro, sinto-me completamente apático. Apático em relação ao país, apático em relação ao governo, apático, senhor primeiro-ministro, em relação a si. Para o senhor primeiro-ministro perceber o meu estado, poderíamos perfeitamente abater todo o défice ou poderíamos entrar em guerra com o resto da Europa que eu, em ambos os casos, ficaria a assistir, desiludido, mas nem triste nem contente. Senhor primeiro-ministro, como eu estão muitos portugueses. Senhor primeiro-ministro, não quero que Portugal entre neste estado e, calculo, o senhor primeiro-ministro também não quererá. Por isso, senhor primeiro-ministro, volto a dizer: o gesto mais patriótico, mais corajoso, mais altruísta e mais amigo de todo o povo português seria a sua demissão.

Senhor primeiro-ministro, sou mais uma voz. Mas, senhor primeiro-ministro, esta voz fala.

Com os melhores cumprimentos e desejando a melhor das sortes na sua vida pessoal e profissional,

Tiago Martins

Almada, 19 de Maio de 2010

2 comentários:

Abadia disse...

Quantas destas cartas o Sócrates deve receber...

Bom talvez receba uma daquelas que expluda ao abrir

Tiago Emídio Martins disse...

É verdade meu amigo... Pode ser que o Inspector Gadget um dia se lembre de lhe mandar uma carta... :D

Grande abraço e obrigado pela visita! :)